Por que situar o jogo em uma democracia?

Kallipolis: o jogo dos governos
4 min readSep 30, 2021

A República é uma obra riquíssima em tópicos que acabam derivando da pergunta inicial: “o que é a justiça?” (I, 331c); seguida de: “será que o homem justo é mais feliz que o injusto?” (II, 364a-367a). Como mencionamos na apresentação inicial, está além de nós esgotar a complexidade filosófica do nosso corpus, mas, tratando-se da elaboração do jogo, podemos compreender seu contexto através de uma reflexão sobre A República como um todo.

A estrutura deste diálogo realiza constantemente paralelos e imagens quando tratando de seus temas. Um, que é um tanto notório, é o paralelo que Sócrates faz constantemente entre a pólis e a alma do cidadão. Assim, visando compreender a natureza do homem justo, Sócrates e seus interlocutores iniciam a construção de uma cidade justa (II, 368a). Esse movimento dos personagens acabou por refletir no jogo, na medida em que a alma dos personagens representa um modelo de governo que se efetivaria com sua eleição.

Depois de passar sete livros estabelecendo exaustivamente sua pólis, Sócrates e seus interlocutores passam a explorar modelos de governos que já teriam sido efetivos, e seus respectivos governantes (a saber, aqueles que inspiraram os personagens do nosso jogo) (VIII, 543a-545c). Sua apresentação parece seguir um certo movimento de transformação que começa na cidade justa, ou bela (kallipolis), passando pela timocracia, oligarquia, democracia, até desencadear na tirania.

A cidade justa, de maneira geral, é mantida pela sua harmonia, que é suprida pela virtude de seus cidadãos (IV, 422e3–425c). Essa virtude parece ser caracterizada por um senso de agir em prol do bem do todo da pólis (IV, 441c4–444c). Dessa forma, o tema da educação acaba por ser central na formação do homem justo, uma vez que é ela que vai adaptá-lo a tal vida virtuosa que é essencial para a ordem da cidade.

Ora, em uma cidade tão restrita, não há como o governante fugir dessa necessidade de orientação. Sócrates diz que aqueles que se mostrarem com uma inclinação para buscar o conhecimento, seriam os selecionados para reinar (VI, 502d-504a5). Porém, uma natureza valiosa não é suficiente para garantir tal cargo: estes possíveis governantes (chamemos eles de filósofos) deveriam passar anos estudando, antes de assumirem o cargo a eles designado (VI, 504a6–505b6).

Não entraremos em muitos detalhes sobre essa educação e as disciplinas que o filósofo tem de enfrentar, na verdade, nem aprofundar na questão das ideias e do bem é nosso objetivo aqui. Queremos destacar que depois de toda sua educação (ou se formos utilizar a famosa apropriação adorada pela mídia: depois de “sair da caverna”), o filósofo não tem vontade de reinar: ele contemplou a melhor vida e reinar significaria voltar a um estado de obscuridade que foi penoso de abandonar. No entanto, ele o faz mesmo assim, pois sabe que é o melhor para a cidade — o filósofo “volta para a caverna” (VII, 519e-521b).

Observamos aqui a educação do filósofo não ser o único requisito para seu reinar: ele também é justo. Ou seja, o filósofo abre mão do desejo individual de não sofrer a “volta para o interior da caverna”, em vista de realizar sua função e manter a harmonia da cidade. Assim, ele retorna uma vez que a implementação da justiça na cidade é apenas possível com o reinado de alguém que tem a natureza própria e que foi educado para fazê-lo.

No entanto, tudo no devir acaba por se desfazer. Eventualmente, algum filósofo acaba por procriar na época inapropriada para fazê-lo (VIII, 545d-549b). Sim, a harmonia da cidade também depende da época em que seus cidadãos acasalam; o que é um detalhe digno de menção não só porque ele acarreta na queda da cidade bela, como também ilustra a diversidade de preocupações contidas na mente de um filósofo.

Brincadeiras à parte, a cria do filósofo, quando concebida fora da época estabelecida, não nasce com a natureza própria de um filósofo e acaba por subir ao posto de governante que não lhe é próprio. Assim, essa criança vai ordenar a pólis de uma maneira desarmônica, desencadeando em uma timocracia (VIII, 545d-549b). O timocrata é descrito por Sócrates como ainda tendo algumas características virtuosas, que aprendera com seu pai, mas, ainda assim, é um tanto cobiçoso devido à influências externas (VIII, 549c-550c4).

Em sequência, a oligarquia surge na medida em que os nobres, negligenciando o bem geral da cidade, passam a preocupar-se cada vez mais com seu acúmulo de riquezas individual (VIII, 550c4–553a5). Assim, eles passam a burlar a lei em vista do lucro - o que reflete nos outros cidadãos, que passam a valorizar mais o rico que o bom. Dessa forma, é estabelecida a lei que inaugura a oligarquia: a que limita a participação política àqueles que possuem uma certa quantidade de riquezas. Com efeito, o oligarca é descrito como alguém extremamente avarento (VIII, 553a6–555b3).

A democracia (VIII, 555b4–558c9), por sua vez, é implementada na medida em que os ricos, desejosos de aumentar cada vez mais suas riquezas, acabam por tirar dinheiro de homens honrosos, que acabam indo morar nas ruas. Estes começam a planejar uma revolução e, depois de uma guerra civil vencida pelos pobres, há o início da democracia. O democrata (VIII, 558c10–562a3) é descrito como aquele que não diferencia prazeres bons e ruins, todos são iguais; de forma que podemos pensar que os desejos particulares de cada um seria valorizado, independentemente de suas consequências para a pólis como um todo.

A democracia abre espaço para a efetivação da tirania (VIII, 562a4–566d6) devido à sua liberdade desenfreada. A democracia é receptiva apenas com aqueles que se deixam governar pelo povo, de forma a não avaliar a educação daquele que é desejoso de governar. Assim, para ser eleito, basta que o tirano (VIII, 566d6–569c) se apresente como amigo e salvador do povo, que resolverá todos os problemas da cidade.

Na medida em que queríamos explorar todos os modelos de governo (e seus governantes) apresentados n’A República, optamos por realizá-la na democracia. Isso porque ela parece ser apresentada como aquela que permite a expressão de opiniões diversas e, portanto os personagens poderiam ser desenvolvidos como a incorporação do que Platão parece desenvolver no corpus do nosso projeto.

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